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ODIVELAS: A VIOLAÇÃO TEM DE SER UM CRIME PÚBLICO

A violação é uma das maiores formas de opressão existentes na sociedade atual, caracterizada pelo medo, pela subjugação física e pela humilhação, afetando desproporcionalmente as mulheres.

O crime de violação é utilizado como uma arma desde os tempos mais remotos, deixando claro que como sociedade ainda temos muito para evoluir. Centenas de mulheres continuam a ser violadas debaixo dos nossos olhos, como relatou Nadia Murad, uma ativista pelos direitos humanos ganhadora do prémio Nobel da Paz em 2018. A violação é usada e foi usada como arma de arremesso contra as mulheres em todas as guerras contemporâneas, durante a Segunda Guerra Mundial, na guerra do Vietname e em muitas outras. O uso das mulheres como arma de guerra é uma das maiores violências perpetradas sobre um ser humano, concretizando um crime que raramente é julgado.

A violação representa por isso, um atentado claro aos direitos humanos das mulheres, despojando-as da sua humanidade, humilhando-as, objetificando-as e deixando na maior parte das vezes, feridas profundas para o resto das suas vidas.

De facto, a violência sexual é maioritariamente sentida pelas mulheres, configurando estas 91.9% das vítimas, de acordo com os dados presentes no Relatório Anual de Segurança Interna. O mesmo relatório revela ainda que os arguidos são maioritariamente homens (99.3% dos arguidos) e que são em grande parte familiares ou conhecidos das vítimas. Denota-se assim que a maioria dos agressores faz parte do círculo de pessoas próximas da vítima.

Os dados indicam ainda que, em Portugal, a violação é o sétimo crime mais praticado no país na categoria de crimes graves (segundo o Relatório Anual de Segurança Interna). Ainda assim, as associações de apoio às vítimas alertam para o facto de que os valores oficiais das queixas ficarem muito abaixo daquilo que é o número efetivo de crimes por violação em Portugal. Não há dúvidas de que são vários os fatores e variáveis que limitam a capacidade da vítima em apresentar queixa. Por um lado, muitas vezes, a vítima tende a sentir-se culpabilizada, por outro, experiencia momentos de choque, medo, depressão, vergonha ou mesmo, negação. Aliado a este elevado número de fatores limitadores, junta-se a falta de autonomia financeira e económica por parte das vítimas.

No que diz respeito à falta de autonomia financeira, económica ou até habitacional das vítimas, importa voltar a reforçar que grande parte dos agressores e violadores fazem parte do círculo de proximidade da vítima. Assim, as vítimas encontram-se muitas vezes monetariamente dependentes dos seus agressores, o que corporiza uma enorme limitação no momento de apresentar queixa.  Uma vítima que não tem autonomia financeira, não tem casa onde viver e não tem rendimentos suficientes para a subsistência, pode acabar por manter durante anos uma relação de violência. Importa por isso, criar mecanismos de apoio às vítimas. A decisão não deve nem pode ser entre sair de uma relação de violência e tóxica e um atirar-se para o vazio, para a pobreza e para a exclusão social.

É ainda de realçar que as crises económicas, como a crise atual causada pela pandemia, têm consequências desproporcionais para quem parte de uma situação de desvantagem, acentuando e aprofundando ainda mais as desigualdades já existentes. É por isso, agora mais que nunca, necessário definir políticas de apoio às vítimas. Neste sentido, o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda apresentou um projeto de lei com vista a alterar o Código Penal, tornando o crime de violação, o crime de coação sexual e o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, crimes públicos. A proposta acabou rejeitada com os votos contra das bancadas do PS, PSD, PCP e PEV.

Atualmente, a violação é um crime semi-público, o que significa que depende da queixa da vítima, e que esta tem de a fazer no prazo máximo de seis meses, podendo, ainda assim, retirá-la a qualquer momento.  No entanto, conforme a informação disponibilizada pelo Ministério Público, as entidades policiais e funcionários públicos são obrigados a denunciar esses crimes, sem embargo de se tornar necessário que os titulares do direito de queixa exerçam tempestivamente o respectivo direito (sem o que não se abrirá inquérito).

Se a violação fosse crime público, bastaria o conhecimento das autoridades policiais para haver uma investigação, combatendo-se assim a impunidade em que muitos dos crimes permanecem. Esta é de facto uma reivindicação de mais de 60 000 pessoas que assinaram uma petição pública lançada a 10 de março de 2021, reivindicando a alteração do Código Penal relativo aos crimes de violação.

Importa, porém, realçar que tornar a violação um crime público não significa a existência de condenações automáticas nem tão pouco a ausência de direitos de defesa. A conversão em crime público significa apenas que após o apuramento dos factos e se o Ministério Público entender que há motivos para a condenação, esta será apresentada. A violação não pode ser considerada um crime da esfera privada, devendo a sociedade como um todo ser responsabilizada pela sua investigação. Importa por isso, não deixar as vítimas sozinhas ou entregues a si próprias.

Tornar a violação um crime público permitirá ainda que qualquer pessoa possa denunciar o crime, terminando o inicial prazo de seis meses dado à vítima para apresentar queixa. É ainda claro que o prazo de seis meses funciona como um entrave à apresentação de uma queixa crime por parte das vítimas.

Não consagrar o caracter público da violação é também uma forma de perpetuar a mensagem de que a culpa do crime pertence à vítima. É importante assim sublinhar que, a culpa de um crime nunca pertence à vítima, mas antes a quem o comete e que frases como: “Foi ela que seduziu” ou “foi ela que se pôs a jeito” são altamente ofensivas e totalmente desprovidas de sentido.

Há 20 anos, Francisco Louçã e Luís Fazenda davam voz a estes mesmos argumentos na defesa pela alteração do Código Penal relativo ao crime de violência doméstica. Foram necessários vários anos até que o parlamento considerasse o crime de violência doméstica como um crime público. Desde aí, em 2000, todos, todas e todes podemos fazer denuncias relativas à violência doméstica. Assim, enquanto sociedade, protegemos milhares de vítimas silenciadas pelo medo, ao mesmo tempo que responsabilizamos a sociedade civil e o Estado.

As razões que levaram outrora à configuração da violência doméstica como um crime público são as mesmas que hoje deviam ecoar no parlamento e que estão presentes no projecto de lei apresentado pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda. Quando se fala em crimes de violência sexual como a violação, está-se a falar de um atentado claro e evidente aos direitos humanos. Nós, enquanto membros da sociedade, devemos promover o cumprimento desses mesmos direitos, apresentando queixa sempre que estes forem colocados em causa.

As objeções dos vários grupos parlamentares à alteração do Código Penal do crime de violação são em muito semelhantes às objeções levantadas há mais de vinte anos quando se discutia o crime de violência doméstica como crime público. O caracter público dos crimes prende-se com o seu grau de gravidade. Desta forma, tornar a violação um crime público em nada tem que ver com o conceito de paternalismo. A violação representa, como já referimos, uma forma de opressão contra as mulheres, provocando nas vítimas muitas vezes a sensação de culpa e incapacidade. A proposta apresentada pelo Bloco de Esquerda pretende efetivamente romper com o estigma de culpabilização da vítima, apoiando-a. Nesta medida, qualquer pessoa que possa ter presenciado um crime de violação, poderá apresentar queixa contra o agressor, contribuindo assim para quebrar o clima de impunidade que é frequentemente sentido em relação a este crime.

Em linha com a defesa e a proteção de todas as vítimas, a bancada do Bloco de Esquerda apresentou na Assembleia Municipal de Odivelas uma moção na qual condena a violência contra as mulheres, os crimes de género e exorta a Assembleia da República a tomar as medidas necessárias tendentes à classificação da violação como crime público. O documento foi aprovado por maioria, com os votos favoráveis de todas as bancadas e apenas com o voto contra do eleito do CDS-PP.

Assim, a Assembleia Municipal de Odivelas delibera condenar todos os crimes sexuais contra as mulheres, condenar todos os crimes de violência de género e instar a Assembleia da República a tomar as medidas necessárias com vista a consagrar o caráter de crime público aos crimes de violação e coação sexual.

Desta forma, o Bloco de Esquerda continuará a reivindicar que a violação tem de ser um crime público.

A Concelhia de Odivelas do Bloco de Esquerda

Artigo publicado originalmente no jornal Odivelas Notícias a 22 de Abril de 2021