O governo do PSD e CDS decidiu fazer uma reforma administrativa das autarquias locais. Independentemente dos fundamentos do documento, esta é uma excelente oportunidade para voltar a colocar em cima da mesa a questão da democracia, ao nível da sua própria essência e das suas regras.
Mas é pena que esta discussão esteja, por definição, enviesada. A discussão é limitada à partir da pela imposição de um pressuposto economicista. A pretexto das “gorduras do Estado”, o governo do PSD e CDS propõe fazer uma dieta da própria democracia. A pretexto da troika, da situação económica do país e da necessidade do sempre eufemístico “ajustamento financeiro”, tenta impor-se um velho programa político e um novo paradigma de governação da política autárquica.
Contudo, é o argumento economicista que tropeça em si próprio e não passa no teste dos números exactos: na verdade, as 4259 freguesias actualmente existentes não vão além de 0,13% do Orçamento Geral do Estado. E, mesmo aplicando a sugestão da extinção de quase metade das freguesias, está por esclarecer ao certo quanto se pouparia.
Mas se a proposta do governo é enviesada no seu fundamento, esta é também limitada na sua consequência, porque é uma proposta pouco corajosa no seu objectivo. É uma pena que o governo esteja tão obcecado no objectivo de cortar na democracia local e tão pouco preocupado em discutir o aprofundamento da própria democracia local. A todo o custo, querem alterar a Lei Eleitoral das Autarquias Locais, mas não têm a ousadia de sequer discutir a Lei 159/99, que regula as competências das autarquias locais e estipula o compromisso destas com os seus eleitores.
Como é possível que a Lei preveja a obrigatoriedade de uma petição popular ser discutida na Assembleia da República, mas seja absolutamente omissa em relação a essa mesmíssima petição, se esta for direccionada a um órgão municipal?
O governo propõe ainda o fim da eleição das Câmaras Municipais e a sua cooptação pelas Assembleias Municipais. Contudo, uma ideia potencialmente interessante, é de novo construída em torno de um objectivo economicista: reduzir o número de deputados municipais, em virtude da redução do número de vereadores e do fim dos vereadores da oposição. Reduzir o número de deputados é aniquilar os grupos municipais mais pequenos e, com isso, enfraquecer a democracia. Um órgão democrático, seja ele qual for, é tanto mais forte quanto mais opiniões diferentes for capaz de juntar. E por mais crises e mais troikas que nos apareçam, a democracia não tem preço.
Que pena é que haja um consenso mudo sobre o afastamento da política autárquica dos cidadãos e cidadãs. Discutir democracia é, em primeiro lugar, discutir direitos de cidadania. Mas sobre isso, esta proposta e este governo nada dizem.
Termino onde comecei. A discussão é sempre perigosa quando a finança invade a política. E na discussão sobre a democracia não há meios termos: ou se está do lado do aprofundamento da democracia ou se está do lado do centralismo anti-democrático. Quando querem acabar com a democracia, nós queremos aumentar a democracia. Quando querem afastar os cidadãos da escolha pública, nós estamos do lado da descentralização, da participação, da cidadania e da democracia.
Artigo publicado originalmente do jornal Nova Odivelas.
[João Curvêlo é estudante de Sociologia, deputado municipal no concelho de Odivelas e membro da Comissão Nacional Autárquica do Bloco de Esquerda]